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Capítulo III - FRAGMENTO DA CEGUEIRA

Capítulo III - FRAGMENTO DA CEGUEIRA


Eu não sei se quero dizer a verdade.

A mentira é uma verdade feliz-antropomórfica-finita. Mentir é saber que o caminho terá um fim no espaço e no tempo, apreciar os jardins de Versalhes e tirar uma fotografia. A verdade é uma angustia pior que pesadelo quando gritamos tentando acordar. Eu não queria dizer muito sobre a verdade porque é como subir uma escada de Escher, sobe e desce e sobe e desce etc. A verdade é esse caminho rumo ao infinito. Eu prefiro mentir um pouco pra vocês e pra mim.

Uma mentira bem contada é tão ilusória que a sobriedade da vida nos faz sentir felizes. De modo inverso, a verdade é um estado ebrioso quando se quer beber cada vez mais e fazer aquele banquete, sabe? Igual dos temulentos da Grécia Antiga. Dizem que Sócrates era o maior pinguço e na verdade ele fez uma aposta com seus amigos antes de morrer: era uma seqüência ad infinitum de cachaça - a cachaça foi levada, diz Homero, por Hércules quando passou aqui no Brasil enquanto completava algum de seus trabalhos. Sócrates era um senhor esperto e apostou que conseguiria tomar todas eternamente, conforme fosse vencendo, pela dialética, os diálogos. Assim tentou aproximar-se cada vez mais da verdade. Sabemos que não funcionou, ele teve aquela tal da cirrose e acabou falecendo. Ainda bem que Platão quando herdou a cachaçaria inventou aquela coisa das idéias: ele que era ser finito poderia beber pouco, pois era apenas reflexo de um eu perfeito no mundo das idéias, lá sim seu espírito vivia ébrio e sedento por filha-de-senhor-de-engenho e tinha toda a cachaça na cachaçaria idealizada onde alcançaria a verdade absoluta.

Vou ser sincero, essa coisa de verdade é invenção de burguês que tem muito dinheiro pra gastar e ficar no ócio pensando sei lá que da vida. Eu não quero só pensar não, aliás, já disse que tenho sentido um inchaço e acho que é de tanto pensar. Queria mesmo é escrever e por isso estou aqui. Seria tão bom se eu pudesse esfregar minha cabeça no papel e imprimir todas as minhas idéias, principalmente as mais mentirosas porque eu quero ser um pouco feliz. Deste modo eu me expressaria e o eco na sua mente faria de uma só forma mais nítida, mim palavras você e nós. Digo isso porque as palavras que querem sair de mim estão, ainda, sob meu controle. Eu sou tão violento às vezes e passei meses me policiando e aprisionando todas as palavras que queria escrever, agora me sinto inchado. Seria muito bom se eu fosse como o Jesus, aquele judeu cujo nome foi usado pra dominar o mundo, pois aí seria só veronicar essas minhas folhas e as palavras quando saíssem de mim, já mortas, descansariam sobre essa mortalha. Mas ele era muito verdadeiro, crêem, e eu quero mentir um pouco por isso é melhor eu tentar controlar minhas palavras.

FRIEDRICH – Colega, que maldição foi inventar hein!

MIM – Ah seu grande picareta decrépito resto de nós. Era você então? Será que estou com pressão alta? Não consigo ver, pois está tudo tão claro. Você consegue?

FRIEDRICH – Olha o respeito. Sim consigo, – diz enquanto olha para nós –, consigo principalmente porque agora já é cedo e está muito claro, a Sol já sobe.

MIM – Mas a claridade me ofusca a vista. Meu corpo dói, estou completamente inchado e você aqui ainda pra me atormentar.

FRIEDRICH - Criança, você tem que morrer pra entender. Já disse. Como assim já disse? Criatura minha, acabei de dizê-lo. Ah, acho que é essa pressão que sinto. Me dá um copo daquele. Claro. Enche tudo! Ah, que delícia. Eu não consigo entender. Tudo parece tão fora de mim. Estou ébrio de vida.

Estou cansado ainda, preciso manter a calma. Tudo isso me assusta e preciso escrever pra aliviar toda essa tensão. Eu tenho medo. Tenho medo de morrer se parar de escrever. Mas quando escrevo mato todas as palavras. Elas que estavam presas na cela do meu coração, agora as condeno à forca. Mas preciso fazê-lo. Perdoem-me, todos estes eus quando peco contra nós. Preciso respirar.

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