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Período de maturação




Pausa para maturação de uma futura história

Fragmentos

(Douglas Feitosa,
J. J. Borges e
Friedrich Romalek)

"(...)Escrevo como num sonho. Estou vendo minha imagem no espelho. Enquanto escrevo, minha imagem está me sonhando isso que escrevo enquanto me vejo no espelho sonhando escrevendo. Sou um labirinto espiralado. Eu me entreguei à vida. "
(Fragmento de algum Capítulo 5º de uma futura história)

"(...)Como é bom ser juiz. Apito na boca e por dentro as palavras são pronunciadas e silenciosamente escorregam pelo polímero ensebado de sintaxes e entre suas paredes ecoam desesperadas temendo o fim logo ali adiante uma luz divina vindo em sua direção as emociona e num baque de um bafo escapam do apito e desfalecem no ar se misturando ao mundo e entrando na respiração doutros juízes: a quintessência. "
(Fragmento de algum Capítulo 4º de uma futura história)

"(...)Eu chovo às vezes, é chovo do verbo chover. Pois se chorasse o lenço da princesa secaria minhas lagrimas. Não, eu chovo em forma de rio. Eu rio também. Eu rio durante a chuva de mim muitas palavras e seus afluentes se transformam num mar devido à gravitação. Todas chegam aos meus pés. Todas estão mortas. Menos eu. Eu queria saber o que é morrer."
(Fragmento de algum Capítulo 5º de uma futura história)



PRÓLOGO

“Je est un autre.”[1]

(RIMBAUD, Lettres dittes Du voyant)

Isso aqui é um prólogo. Para que servem os prólogos? Dizem que é a primeira parte da tragédia, no teatro grego. Dizem também que é a primeira personagem a entrar em cena, a que expõe o prólogo. Quantas baboseiras dizem! Eles dizem! Não dizem nada! Quem são eles? Somos nós? Eu sou contra prólogos. Porque só há uma coisa a ser anunciada, a morte através da narrativa. Tudo o que acontecerá será o encaminhamento para o fim da obra, a última palavra. A minha morte, eu autor, eu narrador, eu personagem, eu leitor e eu. Todos nós seremos mortos. Na verdade nascemos mortos. Nascemos ao escrever morremos, nascemos ao ler morremos, nascemos ao ser morremos, nascemos ao representar morremos. Esta história já nasceu morta, por exemplo. E tenho prazer e orgulho em dizer isto! Eu quero que fique o vazio. O Deus bem sabe o que quero dizer, todos têm sua hora e a hora do homem é toda agora, o já, o sempre já, a hora de ser e deixar de ser é sempre agora. Eu quer criar e dar vida, morro logo a seguir. Não preciso de eu-fui, preciso esquecer o que fui, preciso ser o que sou e sou o que sou morrendo o que fui. Eu morre. Eu vive. Eu é. Eu-Deus-Homem. Super-homem criador. Este prólogo não é um começo é justamente o fim e depois do começo.

Há meses venho propondo dar vida a este eu que pensa. Também propus a todos os outros.

Os outros pensaram seus pensamentos meus em mim. Será que queriam se sentir melhor? Eles deviam estar meio aéreos. Eu queria ser o ar. Pra me espalhar por aí. Seria alento de magistrado. Que maravilha seria eu carregando sobre mim a sentença dos condenados. Você está condenado a viver 76 anos 5 meses 4 dias 3 horas 2 minutos e 1 segundo, nada mais. Iria espiralando dentro do ouvido escorregando na helix. Depois do tragus seria tragado pela concha e arremessado no canal auditivo externo. Ali encontraria minha banda predileta com todos seus instrumentos: Martelo ferramenta anêmica / proletário de sobrevivência / modela na bigorna cênica / mortalha lacônica da ausência. O sentenciado sentiria uma breve tremedeira. Eu tremo às vezes. Deve ser a cóclea: cír-cu-lo; gira; roda. Estou tonta.

Durante esse período senti o peso do nascimento de uma coisa. É uma coisa palavra. Senti o peso de uma palavra querendo sair das minhas entranhas. Entrando pelo lado de dentro, mas vindo de fora empurrando aqueles outros eus. A palavra sempre acha que é gente. Uma nuvem de pensamentos em formação pingando sentimentos em gotas de tortura chinesa. Plim! Ah, como é bom sentir alguém saindo de nós. Porque diminui a solidão mesmo que esse outro seja eu mesmo e você.

Eu costumo criar nos meus momentos de solidão essas palavras, essa gente toda que somos nós. Mas essa coisa, essa gente, essa palavra que somos, demorou tanto tempo que aumentou a solidão. Hoje não sei se esta coisa me deixa feliz ou triste. Eu sei menos ainda quando penso sobre esse processo de criação, se é que podemos chamar assim. A minha tristeza se deu quando pensei que tudo que nasce está fadado à morte. O Deus assina o fim da criatura quando permite seu primeiro sorriso, sua primeira arfada. O Deus é esse outro maior, às vezes como eu ou você, mas em geral como nós. É essa coisa também que me nasceu, a palavra. Ele é o Verbo. Hoje me deu vontade de ser além de mim mesmo, de ser outro, de ser esse outro maior, de ser essa coisa Deus. Deu-me uma preguiça.

A tristeza vem disso tudo aí. Há meses venho propondo a este eu que pensa. Eu vinha me sentindo inchado. Às vezes eu pegava aquele balão de hélio e enchia meus pulmões de gás e mudava minha voz pra parecer mais velho, inventava lendas pra assustar meus amigos. Trinta e três: diga bem alto; palavras inteiras que poderiam ter sido e não foram; labirintite; diarréia: pensamentos confusos em forma de totem.

Queria guardar pra mim essa vergonha de criação. Acho uma vergonha mesmo e também uma violência. Dizem que penso. Vou escrever que prostituo nossos pensamentos. Um pensamento pode me levar a escrever uma palavra. Enquanto massa amorfa, deforme labirinto em forma de reta infinita, o pensamento vaga dentro da alma. Sua alma prostituída por mim, de graça, obriga-me a expelir essa coisa-pensada. Foi assim que me privei. Eu me sentia envergonhado por ter que olhar no espelho enquanto espremia essa...

O Deus é um malandro solitário. Ah, Deus-eu-mim-outro, nós ainda lhe pegaremos e daremos uma surra. Desculpem-me a expressão, mas salvei o Deus porque ele sempre fala como um encachaçado. Ele escreve por linhas tortas tanta coisa absurda neste mundo. Absurdo! Depois de beber, eu e todos aqueles nós mesmos consigo expelir este excremento do pensamento, acho que é a idéia ou quiçá uma palavra. Olhe, eu estou a tanto tempo querendo escrever e hoje me propus a todos nós escrever algo. Você acha engraçado? Acha cansativa a minha fala? Cansado estou eu já que havia tanto tempo estive querendo guardar o pouco de mim que sobrou e agora tenho que ser este Deus. Temo a impessoalidade, que pecado.

Sou geminiano. Hoje vivo um dia agitado, já que Mercúrio está muito bem posicionado com o Lua. Meu nome não importa porque somos todos nós este eu. Então não importa quem sou. Eu sou uma brincadeira do Deus e vou brincar com ele também, aquele nosso outro maior. Soprou o verbo em nós e nós verborraremos agradecidos, amém.

(D.R.F., F.R. e J.J.B.)



[1] “Eu é um outro”