11:35 PM

Desconstruindo a existência em-si


Desconstruindo a existência em-si
Uma forma
desforme
um signo
significando
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Inteiriço somatório
vivendo de vontades
sofrendo por existir
existindo porque significo
significando sofrimento
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A forma que me é
que represento numa realidade
realizo transformações
me faço existir
me vê significante
existe comigo em mim
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Preciso existir
neologisando minha realidade
narrando o passado
deseconstruindo a formalidade
dando formas ao mundo
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Me deixe existir
o Deus-Homem
que me inventa
reinventa a si
e me desmonta
à sua imagem
---
Preciso existir
uma forma
desforme
um signo
significando

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Friedrich Romalek, filósofo, 77 anos, nascido em Psicatomópolis

11:30 PM

A caixinha

A caixinha

Era noite bem clara, as luminárias das grandes avenidas pareciam um carrossel monstruoso iluminando todo o céu da cidade, mal poderia ver algumas estrelas brilhantes naquela sexta-feira. Seu João, como sempre, após longos anos como biscateiro resolveu ampliar um pouco essa vida medíocre, mas que lhe salvava o pão e a pinga, claro. Homem trabalhador, batalhador, sobrevivente da metrópole, era caixeiro. Não, não era viajante, mal tinha o dinheiro do circular, catava caixas mesmo, de papelão, pelas ruas e vendia para comprar a pinga e o que sobrava colocava comida na mesa.
Passava sempre em frente dum casarão, dos Malta, lá em Perdizes, era de uma família tradicional da cidade e como de costume havia muitas caixas com os restos da casa. Algumas caixas eram enormes, vinham de longe, tinham aquele símbolo de um avião na lateral, alguns identificados como frágil, não pise, cuidado, outras eram minúsculas, não tinham nada que as identificasse, e ainda aquelas que nem dava para ler porque eram numa língua estranha ou porque simplesmente não se conseguia identificar alguma coisa, algumas outras caixas pareciam de festas, de festas de aniversário, de premiação, de eventos outros. Seu João sonhava como seria a vida de “Dotor”, devia ser um sossego completo, vida de marajá.
Saiba que seu João era apenas um caixeiro, biscate, bico era o que fazia, onde já se viu sonhar assim!
Seu João passou então em frente aquela casa enorme, viu as caixas, pegou tantas quantas cabiam no seu carrinho de madeira, esforçou-se para empurrar o carro que ficou pesado, era demasiada a quantia de caixas, ainda mais naquelas ruas íngrimes daquele bairro. Assim foi em frente seu João completar a noite de catador de caixas, caixeiro, carregador, biscateiro.
Quando chegou em casa deu uma olhada naquela quantia de caixas, pensou em sua vida maldita que não mudava, em sua mulher que já nem queria mais fazer o serviço, o filho drogado que se perdia na noite, o cachorro sem perna que achava que podia lamber sua boca quando voltava bêbado para casa, enfim era puro descontentamento, ainda mais quando se lembrava daquele casarão. Enquanto pensava, uma caixa lhe chamou a atenção, talvez pelo tamanho, tão minúsculo, que a fazia se perder entre as caixas maiores, mas seu João a viu, pegou, chacoalhou, jogou-a em cima da mesa enquanto media um copo de caninha. Deu aquele gole, soluçou, -Ah! Mardita!, e voltou-se para a caixa, estava fechada, havia apenas um orifício lateral, só isso. O mistério despertou a curiosidade de Seu João, que havia dentro dela, pensou. Num golpe certeiro, meteu o dedo no buraco, enfiou até o fundo e num solavanco destruiu a pobre como se fosse nada. Nada não havia, mas um bolo de notas verdes, isso sim.
Aquelas notas despertaram a imaginação mais obsoleta, mas antes a mais recente, já imaginava as coisas que iria comprar, um sofá, uma televisão de 29 polegadas, o que iria fazer, as viagens para Osasco, o carro zero quilômetro, vida de marajá, pensou. Mas antes o velho resolveu guardar consigo a descoberta até que resolvesse alertar a família, pois imagine se o filho descobre, ia fumar todas as notas, melhor, iria deixar apenas uma daquelas de 100 para cheirar o santo pó de cada noite, sua mulher se descobre, na hora vai embora para a casa da irmã, não ele não seria otário, guardou as notinhas.
Na semana seguinte passou novamente em frente ao casarão, de onde surgiu Dotor” Rubens, o dono da casa. Perguntou-lhe, Rubens, sobre um pacote pequeno no lixo, se o velho havia visto.
O velho João desviou o olhar, pensou, coçou a cabeça, -É, vi sim senhô.
O homem, “Dotor” Rubens, bradou num tom de felicidade, agradecendo o velho, -E o senhor poderia me devolver, está aí com você?
Seu João era pinguço, cafajeste, batia na mulher, mas se lhe reservava a humildade, a idéia de que era pobre, mas não roubava. No entanto, aguardava uma caixinha, quem sabe algum tostão para tomar a pinga matinal.
Seu João disse que voltaria na noite seguinte quando viria buscar mais caixas, como não poderia deixar de ser. Rubens concordou com o velho.
Uma noite depois.
-Então, o senhor pode me devolver?
-Ah! Claro, sim senhô, mas eu não tenho a caixa, só o que tava dentro.
-Tudo bem, é o que mais importa.
-Óia “Dotor”, eu queria que o senhô se alembre que eu não sou bandido, tá bom? Tá aqui o dinheiro enroladinho do jeito que vi dentro da caixinha.
O velho devolveu o dinheiro, observou o brilho nos olhos de Rubens e ficou ali parado enquanto o rapaz voltava para o casarão, feliz da vida. Seu João abaixou a cabeça e voltou a catar os papéis e caixas na frente da casa, mais uma noite laboriosa de homem trabalhador.
Cabe ao leitor saber, como uma notinha apenas, Rubens foi eleito vereador, por um partido populista, já contava dois anos.