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Carta ao amigo desconhecido

Carta ao amigo desconhecido

Prezado amigo,

Melhor,

Incólume amigo,

Na verdade,

Magistral excelentíssimo adorável despojado inadjetivável amigo,

Estou mandando esta carta para dizer-lhe a respeito de sua importância neste mundo, nesta casa, neste modo de ser, neste modo de pensar, para dizer-lhe do quanto sou grato por sua importância em nossas vidas, minha vida, na vida dele, na existência cativa que me persuade.

Vou lembrá-lo daqueles momentos de nossa infância, da minha infância, do momento em que ele começou calado a refletir sobre o mundo, não de modo filosófico tautológico cheio de imbróglios, mas daquele teatro cuja fantasia me levava, lhe levava, a ele mostrava tudo quanto minha imaginação podia sozinha, em dupla, em trio ou multiplicada por variáveis, imaginar, criar diversas realidades intangíveis neste mundo, mas em nossa mente. Vou lembrá-lo daquele momento. Vou lembrá-lo, pois assim invento um passado possível, potência jamais atualizada. Vou lembrá-lo, pois enquanto lembro, este passado é em minha imaginação e enquanto imagino que você lembra tudo quanto quero lembrá-lo.

No auto da minha infância eu desejaria conhecê-lo, mas tão pequeno e menino de mim mesmo não imaginava ele nem você, nem mesmo um mim. Eu daquele modo vivia puerilizado arremessando bolinhas de gude contra mim mesmo e arremessava ele e às vezes você contra as outras bolinhas, mas ainda jogava-me enquanto a pipa me empinava, eu ia lá longe. No auto da minha infância eu me declararia simplesmente criança, não quereria crescer tão logo nem selecionar ou privar minha imaginação. Queria que todos eles fossemos nós e eu mesmo seria ele ou ela, bastava criar, na verdade bastaria ser. No auto da minha infância eu desejaria fazer um auto da vida adulta só para sorrir ao porvir.

Mas caridoso amigo, o que é esta amizade que desejo, que deseja, que se faz existir em um momento enquanto amizade, enquanto vontade de amizade, amizade entre vontades cujos desejos são recíprocos? O que é esta amizade que imagino teria sido possível se conhecesse todos os caminhos que me levassem a você, é uma amizade de fato ou desejo de amizade na verdade egoísta, vontade de amizade daquilo que sou, vontade de ser amigo de mim mesmo, vontade de simular um outro no qual sou? Meu amigo, já faz muito tempo desde a última vez, foi conturbada eu me lembro, não nos deixamos conhecer. Porque não deixei que soubesse quem era esse outro que sou, ou esse outro que é você, pois sou outrem relativamente a você enquanto esse outrem é relativamente a mim mesmo conforme é aquilo que imagina de mim, aquilo que sou é outrem por você imaginado, sou a imagem daquilo que outrem tem de mim, sou enquanto outrem, amigo meu, imagina que sou. Amigo é para essas coisas mesmo, praticamente nossa razão de ser.

Eu queria muito que pudesse ouvir os tique-taques deste maldito relógio, na verdade sei que potencialmente o ouve. Será? Você é meu amigo, tenho certeza. Você é aquilo que potencialmente sou, aquilo que quero ser e aquilo que desejo. Amigo é objeto de desejo, imagino dando risada da minha cara não é? Sim, eu sei. Claro que sei, sou seu amigo, sou potencialmente você. Até onde quer dizer que o que se passa comigo afeta você meu caro? Não estou convencido que te afeto, mas estou certo que me afeta, é claro, pois é apenas desconhecido não irreal. Mas quando algo que desconheço pode ter uma realidade que me afeta? Acho que na verdade você existe sim, só não acho que te afeto tanto quanto me afeta, acredito que me afeto. Será que posso criar isso tudo? Estou afetando a mim mesmo, por quê? Acho que preciso me convencer que há outrem aqui meu amigo. Você já pensou que não há como pensar sem dialogar consigo? Será que esse outrem, amigo meu, potência minha, é minha própria voz ecoando alto na minha mente? São tantas questões e você parece estar tão longe, embora sinta que posso conhecê-lo a qualquer momento. Será que já o conheci e não soube quem era? Será que esse amigo existe ou eu visto aquelas imagens das pessoas com minhas fantasias de amigos, vou vestindo um por um. Mas a fantasia ao mesmo tempo em que conforta torna contingente todos eles.

Parece fazer sentido, quantos sujeitos já passaram por nossas vidas, meu querido amigo, mas quem foram eles senão nossas invenções. Foram todas representações de uma vontade, vontade de ser talvez. Digo vontade de ser, pois parece que outrem que me é potencialmente recebe essa quantidade potencial de mim e por isso é um meu-eu sendo além de mim, mas como só posso saber que sou pela imagem da imagem que outrem tem de mim há vontade no meu ser de agir, vontade de ser em mim, no outro e em-mim-no-outro. Toda essa conversa, meu caro, está me deixando assustado tamanha fantasmagoria, estou sentindo-me sedado, só não sei se de luz ou ilusão.

O que me deixa feliz é saber que a amizade como um movimento que não finda no sujeito que chamamos amigo está em toda a parte. Isso que chamamos amizade é o fluxo que se cria diante e internamente a cada sujeito, cuja representação de nossa vontade se faz viva e continua depois de morrermos, pois somos apenas o outro para alguém enquanto alguém nos tem imaginado. A amizade foi uma boa invenção humana quando aprendeu a criar laços afetivos dentro de um grupo. Independente de qualquer coisa só tem uma certeza. Há outrem e há mim. Preciso de outrem e outrem de mim. Invento outrem, pelo menos parcialmente, assim como outrem inventa este mim. Outrem é uma mistura de fantasia e realidade. Direi que outrem é a soma de outros, sou parcela dessa soma, e o que somos afinal? Uma coisa homogênia? Somos uma raça amiga? Ser humano é ser amigo? Ser humano é sendo amigo, meu amigo, seu amigo, é ser ação. Amigos vêm e vão. A amizade é este ponto inextensível que não é o que já foi, nem é o que será, é a atitude é o sendo.

Envio esta carta não na espera de uma resposta escrita, pois um pensamento já vale. Sei que estou sendo nesta leitura meu amigo desconhecido, seu amigo desconhecido. Quando terminar, me guarde na lembrança como um amigo desconhecido por vir.

Sinceramente a meu-eu amigo desconhecido,

De seu eu-meu amigo desconhecido.

Ponto inextensível, momento qualquer por vir da duração.