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O motim dos Deuses

O motim dos Deuses

A Fortuna pregou-lhe uma peça hoje. Na verdade vem fazendo isso desde que nasceu, lembra-se? Você acreditou estar vivo, estar vivendo mais um dia e respirando o ar que um deus lhe pôs na boca ou acreditou que uma chama acendia-se no peito chamuscando a mão daquele que não dizemos o nome. O Barqueiro ficava ali na espreita observando e de conluio com a Fortuna e os Outros. Não se assuste, eles são assim mesmo, Luciano que era homem bom e não se dobrava, apenas ria. Infelizmente passou a vez dele também, meu caro Leitor, e não há mais respeito no outro mundo. Eles querem coagir todos à supremacia do medo. A superstição que vigora dentro de si desde que acreditou em Fortuna, e basta uma vez para que seja desgraçada a morte inteira, prevalece.

Por qual razão rói as unhas? A vontade é tamanha de estar recluso dentro de si que precisa ingerir seus próprios fragmentos e forçosamente o faz, o ardor da autofagia que libera-lhe momentaneamente deste mundo perdido, uma satisfação do desejo de ter a si para sempre e não desperdiçar um pedaço sequer que é seu. Rói as unhas pela desrazão e quer parecer com aqueles amotinados, quer jogar na roda da Fortuna para que a sorte lhe traga um bem e esquece-se que eles não são deste mundo e tramam o seu fim. Arranca pedaço por pedaço ao longo do dia e Narciso sorri envolto de si, cheio de beleza e formosura. Decorre que ainda esnoba aqueles, cuspindo o pedaço já mastigado e arrancando os seus pêlos mostra que tem muito ainda dentro de si. Achei que fosse piada, mas descobri que tem vergonha daquilo que é, pelo medo de ser e viver, prefere a morte. Tem vergonha e cobre-se com panos, tem trauma de ser Homem e faz de tudo para descaracterizar a sua forma, minha metonímia. Faz o jogo dos deuses.

Aqueles amotinados! Tome o óbolo e dê minhas lembranças ao Barqueiro, mas leve todas, pois não quero lembrar que Sísifo abandou suas esperanças por um dracma para passar a noite com sua amada, que a Morte o leve para sempre ao Hades, este mundo já está corrompido demais.

Faz o jogo dos deuses.


J J Borges