2:40 AM

O Apocalipse de Jorge

O Apocalipse de Jorge




Preâmbulo

“(...)O ambiente permanecia escuro. Num estalar sombrio emergia algo que começava a refletir uma massa escarlate. A ordem condensava-se em caos. A paixão envolvia a protuberância que se apresentava disforme, como um manto maculado no peito do sujeito sangrio na batalha. Fervilhavam autômatos absorvendo a dor da singularidade, onde brilhava o raio de sol que flagelara Ícaro. Mas a cera que cobria os autômatos fora ficando cada vez mais rija. Emergiu um aglomerado de massa rubra composta de autômatos,sombra e luz, que se interpelavam sem resposta cognoscível. Do montante aglomerado estalante surgiram conglomerados que buscavam a comunicação. A singularidade esvaiu-se no manto fazendo escorrer sombra, luz e dor. De repente a paz foi quebrada por uma sucessão de sentimentos. Da sombra reconheceu-se o céu, da dor se fez alegria, da luz se fez realidade.

A sucessão de sentimentos desencadeou a entropia que fez do tempo seu maior companheiro. Os eventos se consolidaram na massa cinza como realidade. Fez-se da interação com o mundo, e surgiu numa história. A história já havia começado disseram que muito antes do que poderia imaginar. Nasceu como liame de um ser e não-ser. A interação com o mundo fixou na lembrança cada movimento, cada olhar, cada cheiro e cada som, quisesse ou não. A sucessão de eventos não seria postergável, visto que fugia do controle dos autômatos incomunicáveis, simplesmente vinham e fixavam na massa cinza.

Chegou o momento que a realidade virou lembrança. E a lembrança, previsão. O tempo era reconhecido, pois os eventos concretizados repetiam-se. Do céu surgiu a luz, que fazia sombra e desvanecia em luz novamente. Da luz reconheceu formas que não provinham dela, mas refletiam-na. Disforme tomaram forma, e foram as mais repetitivas.

Do céu surgiram outras formas insignificantes, que amoldaram numa geometria quase compreensível. O círculo flamejante provia calor e conforto. As formas repetitivas que surgiam da luz, providenciavam massas deglutíveis que seus autômatos dissociavam e anexavam a si. Isso era bom. Causava conforto.

A anamnese fez surgir vontades instantâneas. Rememorava o conforto de deglutir quando ao emitir sons, fazia as formas surgirem ainda mais rápidas da luz. Som, deglutição e conforto. O tempo trouxe em seus eventos certos tipos de sons que faziam as formas confortantes entregarem aos seus autômatos esses ou aqueles tipos de massas. E foi confortante.

Certa vez a entropia esvaneceu. O tempo pareceu não querer penetrar na sua massa cinza. A sombra permaneceu uniforme, e suas vontades surgiram instantaneamente. Mas não pode ver as formas confortantes. Emitiu sons, e como num eco eles retornaram, mas não vieram sozinhos. Os sons eram irreconhecíveis e estranhamente ficaram armazenados na sua lembrança, mesmo sem perceber a sucessão de eventos. E foi confortante.

Reconheceu formas do céu e do mundo. Passou a interagir cada vez mais com as formas vindas da luz, e as mesmas começaram a emitir sons, tais quais aqueles da sombra. Não os entendeu, mas foi associando os sons às formas, e àquilo que o fizera enxergar. Quando emitia sons estranhos e olhava um objeto disforme, as formas repetiam o som e beijavam sua pele. Era confortável. Sentiu-se seguro.

Eis que surgiram sons referentes a outros sons, e nada compreendeu, mas os antigos adquiriram significados. Significados! As formas foram ganhando cada vez mais detalhes. A geometria engrandeceu-se em sua lembrança. E sua lembrança pode trazer a realidade. A realidade fez-se transparente. Muitas questões, dúvidas, opiniões e vulgaridade surgiram todas à sua frente.

Não se deixou amedrontar e subjugou a realidade dominando o sentido que fê-lo viver. Mas pagou um alto preço, a morte. (...)”

FIM

CAPITULO I

Jorge da Silva era filho de Maria das Dores Domestica e João Pedreiro da Silva, foi parido numa região da periferia de São Paulo, na casa deles mesmo, que no fundo não era bem deles, uma região onde havia ocorrido várias apropriações de terra, por sorte eram públicas, pois se fosse em outros cantos, jagunços tratariam de mandá-los para sete palmos debaixo da terra, aonde a chuva um dia viria tenebrosa varrer seus restos ladeira abaixo no São Luis. Veja bem, melhor, leia atentamente, essa família nada tem de importante sob aspectos globais, não poderiam mudar o futuro da nação, não poderiam brigar por justiça, posto que nasceram na pobreza e eis que o futuro estava marcado, se quiser aceitar quando digo que posso prever o que vai acontecer a esta desgraçada família aceite, se não, continue folheando e vamos ver se me surpreendo, mas duvido. Duvido não por desacreditar que uma pessoa, seja qual for sua classe social, sexo ou ideologia, possa traçar seu futuro, mas acredite, em São Paulo as interações com o mundo real parecem não existir, como se alguém manipulasse seu ventríloquo lendo um livro, ou seja, nada de especial haveria de acontecer.

Era tarde e Jorginho como qualquer outra criança não parava de berrar, gritava feito um porco no matadouro, mas não fugia das atitudes das outras crianças. Jorginho ia crescendo, suas madeixas caindo sobre os olhos verdes, sua pele parecia empalidecer cada vez mais, sugava os seios de sua mãe com voracidade, assemelhava um bezerro recém-parido, continuava a crescer. Seu João como todo morador da periferia, era homem trabalhador, fazia casa de madame e magnatas da cidade grande, era pedreiro, parece ate que nasceu para isso, tinha braços longos e fortes, mãos calejadas pelos vários anos de vida nas obras, orelhas curtas e escuras, nariz fino e achatado na ponta, e um bigode que era a maior atração nas obras, lembrava um paulistano do começo do século XX. Dona Maria não merece ser mencionada agora, provavelmente deve estar trabalhando em alguma casa, basta a você, leitor, saber que ela era doméstica, não tenho nada contra domésticas, mas Dona Maria era uma bela de uma doméstica, que fazia todos os serviços que lhe cabiam, se é que o leitor compreende, se não, me acompanhe.

Dona Maria acorda todos os dias 4:30, levanta o lençol, olha para os lados, e se vê diante de um espelho, mas é invisível, no máximo uma imagem distorcida de uma realidade insana, ela tosse na palma da mão, sente um cheiro de álcool e percebe que fez seu serviço. Olha com cuidado por um enorme corredor e vê um banheiro levemente iluminado e corre em sua direção, tranca a porta, liga o chuveiro e esfrega o corpo com toda a força que pode. Na verdade essa rotina foi mudando com o tempo. Não, ela não passou a acordar em casa, por certo acostumou com o seu hálito podre, prestes a entrar em combustão, não se importava mais em tirar o sebo de um homem que não fosse seu marido. Maria das Dores, também nascida em berço de capim, fora, um dia, mulher como qualquer outra, ia a missa todo domingo com o livrinho preto debaixo do braço, cantava no coral todas as terças 9 da noite, se não me engano, até que conheceu Seu João, que em breve seria seu marido.

Seu Pedreiro e Dona Doméstica cruzavam os olhares, um desvio aqui, outro ali, um sorriso, o Pastor não parava de gritar, um copo de vinho selando a irmandade e no dia seguinte correram num daqueles alistamentos de casório comunitário lá no Pacaembu, era uma solução para pessoas que vivam a situação econômica que esses dois pobres diabos viviam.

-Aleluia, na cuia sou sua, de noite e de dia?

-Sim, agora comprar um lugar, que tem rio e luar.

-Mas não temos papel, só grinalda sem vel, fico sem rio e sem luar, modo já se mudar.

-Oxe, mas um jogo sei jogar, tu bem que poderias trabalhar, modo comprar junto de mim esse terrenin' que tem rio sem luar.

-Oia, eu sei cozinhar e umas roupas passar. Eu nunca que trabalhei noutra coisa. Poderia trabalhar no lar, de modo a juntar, lavar e passar?

-Oxe, minha vida, agora no meu peito bate o seu calor. Temos que preservar a vida que do ventre de minha senhora virá, meus bezerros desmamados que de seu doce mel alimentarão, crescerão altivos, vivos e a fadiga longe na seca deve ficar.

Leitor, não ache que irei ficar aqui lhe contando algo que já sabe o que vai acontecer, eu avisei que essa família não tinha nada de diferente, tudo previsível. O que posso contar, aliás, fiquei sabendo da boca do povo, é que eles não conseguiram comprar o almejado terreno, mas ficaram sabendo de uma invasão, por favor, não comente isso com ninguém, lá na Guarapiranga e fizeram um barraco de madeira que todo dia de chuva parecia um local de coleta d'agua e não um lar.

CAPITULO II

Quando a luz entra na janela, ai que dor. Ploc! Agora esta melhor. Leitor, os demônios estão em nossa mente, olhe-se no espelho e entenderá o que digo. Um demônio também esteve na mente de Dona Maria, ele se chamava ganância. Ganância era um demoniozinho que vivia assombrando os ouvidos daquela pobre mulher. Quando ela começou a trabalhar, a renda somada com a de Seu João era o suficiente para sobreviverem de forma medíocre, como a maioria dos paulistanos, já que não precisavam se preocupar com aluguel ou mensalidade de financiamento da casa própria, contas de água e luz, enfim, não tinham gastos controlados pelo governo. A luz chegava em casa por uma gambiarra que o Seu João fez no poste de energia, o famigerado “gato”, a água vinha por um desvio do encanamento da rede pública. O esgoto? Bem, o esgoto era jogado ali mesmo, na Represa Guarapiranga.

Dona Doméstica vinha trabalhando havia alguns meses numa casa grande da zona Sul. Portões e muros altos, um jardim enorme com bromélias, avencas, tulipas e uma árvore que chamava a atenção da doméstica, uma primavera de flores rosas. Também havia ali, uma parede branca como neve, dezenas de janelas, que fazia a coitada imaginar o esforço para limpá-las.

Na casa moravam Madame Catadindin Real e Sir Neymo Green, ela espanhola e ele um elegante especulador de Londres, recém-chegados, viviam de toda luxúria e prazer que o dinheiro poderia comprar. Sir Neymo era homem elegante, pelo menos à frente da corja que comanda esta cidade, sempre pomposo com seus cabelos curtos e grisalhos, um bigode fino e extremidades compridas e torcidas, lembrava um daqueles barões do café que um dia viveram por aqui, parece que não mudou muita coisa. Todavia Sir Neymo também tinha um demônio no espelho, ele se chamava safado. O demônio safado de Sir Neymo o atormentava todos os dias quando estava em casa e via Dona Maria. Olhava no rabo de olho, fazia pose de homem sério e que exigia respeito. A domestica sorria tentando ganhar simpatia dos patrões, mas ninguém que tinha a posição de Sir e Madame deixaria uma serviçal, de tal nível, sequer se aproximar para uma conversa. No entanto, o demônio safado assoprava canções de safadeza no ouvido de Sir Green:

“Olhares perversos,

Sabores diversos.

Toques travessos,

Choque no avesso.

Sinta a cinta,

Levantar faminta.

Toque no ponto,

Toque e sinta.”

Um Lorde, como alguns preferiam lhe chamar, não poderia se entregar às delícias de uma vida insana, além do mais essa pobre mulher era uma qualquer, coitada, ignóbil e frouxa que a cidade engoliu. Não, definitivamente um homem de classe não faria isso. Mas o demônio se viu no espelho, e não resistiu à loucura.

-Olá Das Dores, como vai a família?

-Oia Seu Green, famia mesmo só eu e o João. Ele anda meio bronco, mas tudo se resolve depois de noitinha.

-Entendo. Mas sem mais detalhes. Gostaria de lhe fazer uma oferta.

-É mesmo?

-Bem, você sabe que estamos precisando de mais cuidados na casa, e a Madame pediu para que recomendasse alguém que ficasse mais tempo aqui, para os devidos afazeres. Gostaria de lhe propor que ficasse a noite aqui também, claro que irá ganhar mais por isso, e digo que receberá muito mesmo.

-Olhe Seu Green, eu preciso falar com meu marido, num sabe? Se ele aceitar, com certeza ficarei aqui até mais tarde.

Imaginem agora dois demônios tramando inconscientemente o que farão logo mais, o ganância e o safado. Ah, esses dois! Certamente o enxofre irá evaporar na cidade.

CAPITULO III

Ouço passos do lado de fora. Meu cubículo é um tanto quanto cheio de neblina, é difícil ver a realidade que transcorre na cidade, mas o ritmo do cotidiano continua. Bum! Nossa! Deve ter sido mais um pobre diabo passando nos arredores. Mas voltemos na casa de Madame Contadindin e Sir Green. A essas alturas a Dona Doméstica já estava indo embora, devia ser 17:05, pois em frente à casa grande passava sempre uma mesma pedra, alta e de barba por fazer, exatamente nesse horário, nenhum minuto a mais nem a menos.

Dona Doméstica com a ganância de seu demônio, descobriu que ali perto havia um bingo, que passou a freqüentar diariamente. Gastava exatamente ¼ de sua remuneração em apostas, na esperança de algum dia ganhar uma quantia para viver a vida boa que desejava, e logo poderia gastar mais, já que receberia um bom aumento se Seu João aceitasse que ela trabalhasse à noite na casa grande. Saía do bingo, tomava o ônibus aromatizado com cheiro de pedra, não posso dizer que é muito agradável, descia lá no centro da cidade, tomava o metrô, ia até a última estação e pegava mais um ônibus. Essa era sua rotina nos últimos meses, até que foi modificada pela conversa que teve com Seu João Pedreiro. Ele aceitou que sua senhora aumentasse a labuta em prol de uma maior arrecadação que viria sustentar a maior parte da renda de casa. Não pense você, leitor ingênuo, que Seu João não tinha interesses nessa nova vida de Dona Maria da Dores. Ele também acordava de manhã, olhava para o teto furado do barraco, onde gotejava nos dias de chuva, e tentava ver-se no espelho, mas infelizmente somente algo turvo aparecia como imagem. Acostumado a sua imagem, que na verdade refletia o sossego do demônio, o pedreiro nunca se perguntou porque seu aspecto era daquele jeito, mesmo porque esse aspecto para ele era o mais real que podia ter de si. O sossego era o que queria manter, mesmo sendo homem trabalhador a malandragem lhe corria a veia. Se podia ter mais dinheiro, que fosse vindo de Dona Maria.

A pobre coitada foi toda contente se oferecer para os serviços noturnos da casa grande, mal sabia ela o que lhe esperava. Sir Neymo arrumou um quarto nos fundos, onde teoricamente a doméstica iria passar a noite. O combinado era trabalhar a tarde quando não havia ninguém em casa e a noite, servindo o jantar e aprontando a cama do casal. Mas não foi bem isso que aconteceu. Certamente a pobre iria continuar fazendo da melhor forma todos os seus serviços, mas agora o Sir Green estava brigado com Madame Real e passaram a dormir em quartos separados. Claro que Sir Neymo Green esperava que isso acontecesse e se aproveitou da situação para pedir outros tipos de serviços noturnos a Dona Maria das Dores. No começo a coitada teve sua ganância seduzida pelo safado, mas tenho certeza que passou a apreciar a caridade que vinha fazendo cordialmente.

Definitivamente não dá certo o encontro de dois demônios numa encruzilhada. De certo a casa grande ficava bem numa encruzilhada, fazia esquina de duas avenidas principais. A ganância passou a dar seus serviços ao safado e o sossego de Seu João não o deixava perceber essas situações. Madame Real? Não, essa mulher não tinha demônio, na verdade não tinha nada, era mais uma pedra na cidade, com a diferença de ter herdado uma quantia razoável de seu pai.

CAPITULO IV

Às vezes estou aqui, outras vezes penso estar flutuando, divagando, inebriado com a quantidade de pedras que existe nesta cidade. Lá fora não chove mais como de costume, parece que as pedras absorveram toda a água que cai do céu. Mas uma coisa não mudou, quando aqui chove, minha cidade parece um velho lago ressuscitado, as ruas ficam alagadas, os rios esbanjam os detritos. E o garotinho Jorge da Silva, de três anos fica na janela, a espreita de algo. Às vezes parece estar esperando sua mãe, mas não sou confiante ao dizer isso, pois ele não demonstra gosto por ela, aparenta apenas querer o cilindro quentinho com fluido branco e espesso, que somente ela sabe fazer.

Todos os dias ele fica na janela da sala, na verdade um cubículo escuro com um sofá rasgado que disseram passar ratos, chão de terra batida e no alto uma lâmpada queimada que o sossego de Seu João não o deixa trocar. Por 30 minutos olha para um lado, para o outro, senta no sofá esburacado, pensa um pouco e como num ato de desespero sai correndo para o lado de fora. Mas o medo faz o pequeno retornar com exata destreza. No lado de fora tem um tumulto de pedras, de todos os tipos, tamanhos e cores, algumas são bem caricatas e engraçadas. Acho que o garotinho olhou o lado de fora de novo. Pois bem, ele olha desconfiado, dá um passo, dois, o coração dispara e sai correndo em direção a bananeira que esteve ali um bocado tempo plantada. Olha novamente. Escorre uma gota de suor pela sobrancelha, e queima seu olho.

-Ai! Suor danado que cai no meu olho rachado. Que custa desviar-se pelo lado, assim quando brado?

Uma voz do alto, levemente diz:

-Acalme-se pequeno. Não sabe que suor danado é mais um demônio enviado para lhe deixar assustado?

-Quem fala comigo?

-Sou seu amigo. Pequeno e rançoso, sou criado e às vezes parado por certo ofuscado, quando vendem o Sol para o céu.

O moleque ficou estarrecido, queria saber que tipo de bicho que não fosse pedra poderia falar com ele. O bicho estava ofuscado pela luz do Sol que vinha de cima da bananeira. Fazia uma sombra como aquelas quando brincamos com as mãos, parecia ir a todas as direções, comprida, peluda e presa por um fio que balança para lá e cá. O pequeno não levou a sério, e deu um berro.

-Quem faz brincadeira comigo? Sou Jorge, um amigo, sou pequeno, mas não bobo. Quero ver a verdade que balança a linha da atrocidade.

-De certo que sou feio, estranho e sem banho. Mas digo, sou bicho que suga bicho, vivo aqui em cima balançando e sem medo do tempo.

O menino desafiou o bicho. Mandou que descesse. Mas o safado ria, balançando de lá para cá.

-Quer um desafio? Sou escuro como noite, não me curvo por qualquer ato. Então eu retruco, que se for lá fora e me contar sobre o mundo desço e lhe mostro quem sou.

-Sou menino e criança, tenho medo da dança que as pedras fazem.

-Uma ajuda posso dar, um conselho de amigo, um jeito de se criar.

-Então diga seu bicho. Que faço para rolar, e no meio das pedras andar?

-Lhe darei o fio que me penduro, para que pule o muro, uns pêlos do meu corpo para que pareça menino grande e ande, ande, ande.

-Ta certo seu bicho. Uns pelos aqui, outros aculá, e um fio para dependurar.

O menino foi colocando os pelos por debaixo do nariz, em volta do rosto e nos braços. Foi envelhecendo e seu coração se encheu de coragem. As madeixas se esticaram e cobriram-lhe os olhos, seu corpo tomou forma de guerreiro e já se sentia preparado para conhecer a cidade.

CAPITULO V

Estou sentando no meu banco de sempre, à esquerda vejo uma janela, a direita uma mesa de madeira e no alto todas a estrelas que posso contar. O pequeno Jorge ficou estarrecido com a forma que tomou, urrou como um bravo guerreiro preparado para a luta. A luta de Jorge estava apenas começando, olhou para o bicho, olhou para o portão do barraco e correu para a sala. Mirou o olhar direto num espelho ao lado da cama de Seu João. Para sua surpresa continuou a ver o mesmo pequeno Jorge da Silva, com madeixas encaracoladas, olhos verdes e rosto pálido. Em principio achou estranho, não via no espelho o que sentia ter mudado no corpo.

-Que louco, por pouco não me vejo. Sou grande, sou forte, sou destro, mas mostra-me o inverso.

E o garoto que se mostrava no espelho largou a sombra de Jorge e virou-lhe as costas.

-Que faz garoto? Me abandona assim? Me mostre, vire para mim.

-Não sou garoto! Sou Egroj ad Avlis, menino grande. Sou sua sombra no espelho, você de amarelo, verde e vermelho.

-Impossível! Nem um dedo, cabelo e braço você lembra a pessoa que sou.

-De certo que não, o bicho já deve lhe ter dado o fio, o pelo e o cajado. Crê que mudou para o mundo lhe ver. Mas sou o único você.

-Espere sombra do espelho que me veste vermelho, sou menino guerreiro sem cajado ponteiro.

-Não seja tolo de no meio das pedras sem o cajado andar. Sabe que não e uma pedra, mas uma pode virar.

-Então menino eu, que faço para o mundo defrontar?

-Siga o bicho e faça o cajado lhe dar.

O pequeno Jorge se distanciou do espelho ainda receoso, pois estava conversando com o espelho. Achou que estava ficando débil, mas se já havia conversado com um bicho, que mal lhe faria o espelho. Abriu a porta e correu depressa para a bananeira, onde o bicho permanecia dependurado lhe esperando. Os seus passos pareciam desequilibrados, pois havia crescido tão depressa que não teve tempo para se acostumar a sua nova forma.

Chegou de frente para a bananeira e deu um berro bem alto chamando o bicho para uma conversa.

-Seu bicho, cadê o cajado que fica no nicho?

-Moleque safado já deve ter lhe falado, que menino que anda com as pedras também vira uma delas.

-Seu bicho noturno, feio e peludo, porque não me avisou.

-Você cresceu e como guerreiro achei que não precisasse de padroeiro. Mas segure o cajado e seja forte, estarei ao seu lado com muita sorte.

O menino tomou posse do cajado, enrolou o fio de bicho na mão, correu a passos longos ate o portão e prendeu o fio num ato astuto. Segurou com força o fio, enquanto do lado de fora milhares de pedras iam para todos os lados. Num só golpe ficou dependurado e pelo fio pôs-se a subir. O fio era de uma fibra tão forte que começou a cortar a mão do pequeno, mas como um verdadeiro guerreiro não deixou a emoção atrapalhar. Logo o fio viria a macular, selando a vitória desse ato beligerante com o sangue puro do pequeno combatente.

Caro leitor, cai uma lagrima de meu olho ao imaginar o pequeno Jorge da Silva após subir o muro de seu barraco e ficar ali em pé, em cima do muro, somente observando aquele amontoado de pedras, feitas da petrificação da cidade, no caminho que viria desbravar. E garanto sem dúvida, como outro guerreiro uma vez disse, que havia muitas pedras no meio do caminho.

COMEÇO